Inteligência artificial, SUS e dengue são alguns dos temas abordados na entrevista concedida por Carlos Castillo-Salgado, professor do Departamento de Epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Johns Hopkins University e diretor do Global Public Health Observatory da instituição.

 

Muitos países tiveram dificuldade em responder aos desafios impostos, em curtíssimo prazo, pela pandemia de Covid-19. Como prevenirmos ou nos prepararmos melhor para lidar com uma nova ameaça global?
A maioria dos sistemas de monitoramento de saúde pública é ligada às autoridades governamentais. Mas, atualmente, os primeiros sinais de uma pandemia ou problema maior são captados por meio das redes sociais e programas de televisão, por exemplo. De modo semelhante, as farmácias costumam ser a primeira fonte de informação – com estatísticas de compra de medicamentos –, e apenas num segundo momento a realidade chega ao(à) médico(a). Nesse sentido, é preciso muito treinamento e constante observação monitorada. É preciso levar em conta que projetos de pesquisa etiologica tradicional duram dois, três anos… não se pode esperar por isso numa situação de emergência. É preciso que os ministérios da saúde, como os da América Latina, lidem com as crises agora e não depois.

A maioria das discussões sobre o futuro da assistência em saúde atualmente evocam a inteligência artificial (AI). Como o senhor vê essa transformação digital em países como o Brasil, que ainda padecem de importantes problemas sociais e econômicos?
Qualquer novo recurso tecnológico é atrativo, pois facilita a execução de processos, mas isso não é automático e requer treinamento. Ter dados disponíveis às vezes é bom, mas esses precisam ser validados. Diria que a AI é um suporte para a decisão final. Se por um lado afeta diretamente a eficiência das corporações (e é isso que elas buscam), por outro é preciso levar em consideração a questão da equidade na saúde pública. É preciso lembrar também que o diagnóstico final depende também de intuição, algo que a AI não possui.

O Brasil passou a disponibilizar, recentemente, uma vacina contra a dengue, que causou um número recorde de mortes em 2023 e tem sido, por anos, uma importante questão de saúde pública. Como as autoridades e a população podem resolver este problema de uma vez por todas?
A dengue está por toda parte, embora não se enquadre tecnicamente no conceito de pandemia por possuir quatro variantes. O problema não pode ser resolvido apenas com vacina, sobretudo se considerarmos que esta só protege quem já teve a doença anteriormente e também porque os mosquitos estão em toda a parte, inclusive em países europeus como a Suíça, onde recentemente foi detectada a presença do Mosquito Tigre. A transmissão dessa doença se dá em grande medida nos bairros das cidades, dentro das casas, onde os profissionais de saúde em geral não podem entrar. Por essa razão, é preciso também uma mobilização constante e direcionada por parte da sociedade civil. Um exemplo de sucesso nesse sentido são os « Caminantes de la Salud » , projeto de combate à dengue em Baraquilla, Colômbia, que tem por objetivo eliminar os chamados “breeding sites” (criadouros).

Recentemente, Bill Gates escreveu artigo elogiando o SUS (Sistema Único de Saúde), classificando-o como sistema único no mundo, que deveria ser referência para outros países. O que o faz tão especial? E por que não é percebido como tal por boa parte da população local?
Benfeitores filantrópicos em geral gostam de saber quais modelos de assistência funcionam bem. O SUS no Brasil e os sistemas do Chile e Costa Rica são os únicos a fornecer uma assistência à saúde mais completa na América Latina. Mas há um problema, pois tais modelos de assistência não resolvem as desigualdades plenas, que transcendem o cuidado médico e têm a ver com condições de habitação, educação, saneamento básico e nutrição. Tais determinantes sociais não são controlados por setores de cuidados com a saúde, estando mais relacionados à realidade em nível local. Há no Brasil importantes discrepâncias quanto ao acesso à água e esgoto. O SUS, implantado durante a transição política da ditadura militar para o regime democrático, é exemplo de sucesso com programas de imunização, grande impacto e muita credibilidade em algumas áreas. Mas este sucesso acaba sendo relativo por conta dos determinantes sociais.

Há quem diga que, em se tratando de saúde pública, ainda estamos em processo de transição de um modelo reativo (tratamento) para o preventivo (campanhas de informação, exames preliminares de rastreio). Este é mesmo o caso? Se sim, por que é tão difícil prevenir doenças?
Formuladores de políticas públicas não estão muito interessados em projetos de prevenção, com prazos mais longos, pois outras figuras políticas acabam se beneficiando. Questões de saúde pública demandam prazos médios ou longos, mas os administradores públicos querem ter retorno muito cedo. Nos EUA, cuja expectativa de vida atualmente é a pior entre os países desenvolvidos, os gestores de saúde mudam, em média, a cada dois anos. E essa é também a realidade em boa parte dos países. Na América Latina, Brasil, Chile e México são exceções. Políticas públicas requerem estabilidade e continuidade, mas os mandatários passam a maior parte do tempo resolvendo crises. Em saúde pública, é preciso lidar com o chamado “Know-Do Gap”, que se refere à distância entre dominar um novo conhecimento e aplicá-lo na prática. Enquanto o conhecimento médico leva em média dois anos para ser assimilado, o conhecimento em saúde pública precisa de 20 anos. Além disso, há uma crise na formação dos profissionais. Não estamos treinando para resolver problemas, mas sim para responder perguntas e questões de pesquisa.

Parece ser generalizado o entendimento de que a formação de lideranças globais é fundamental para o avanço e desenvolvimento da saúde pública. Como podemos promover esse processo?
É necessário investir em pesquisa aplicada, identificando o que é relevante em grupos específicos e focando na resolução de problemas. Quando se fala em malária, uma solução que é boa para Rondônia não é necessariamente interessante para países africanos. É preciso analisar o perfil epidemiológico das localidades. Penso que os Cuidados de Saúde Primária merecem atenção, bem como a formação de novos recursos humanos para lidar com o “Know-Do Gap”. Precisamos de acadêmicos para transformação. Lembremos, por exemplo, que em muitos países há problemas de documentação de registro civil, e é preciso prestar atenção a aspectos como este, fundamentais para a assistência em saúde. A meu ver, os jovens profissionais de saúde latinoamericanos têm a vantagem de ser enérgicos, menos adeptos de intermináveis listas de leituras e trabalhos científicos, e mais afiados em sua capacidade analítica, já que são expostos desde cedo a duras realidades sociais.