Artigo de Mauro Razuk Filho, cirurgião torácico apoiado pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University
O transplante de órgãos é uma das conquistas mais significativas da medicina moderna, oferecendo uma chance de vida para pessoas diagnosticadas com doenças terminais. No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), coordenado pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), administra o maior programa público de transplantes do mundo.[i]
A era do transplante de órgãos no Brasil começou em 1964 com um transplante renal.[ii] Em 1968, foram realizados os primeiros transplantes de coração, fígado, intestino e pâncreas.2 No entanto, foi somente em 1997 que o SNT foi formalmente estruturado pela Lei No 9.434/97, estabelecendo diretrizes claras para a realização de transplantes no país.[iii] Em 2022, o SUS foi responsável por 95% dos 6.055 transplantes realizados em território nacional.[iv],[v] Entre janeiro e setembro de 2023, esse número subiu para 6.766.[vi] Em 2024, apenas nos três primeiros meses, já foram realizados 2.104 transplantes.[vii]
O SNT é o órgão no Ministério da Saúde responsável pela coordenação dos transplantes no país,3 com a missão de regular, controlar e monitorar o processo de doação de órgãos e transplantes em âmbito local, estadual e nacional. Em doadores com morte encefálica, as comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos (CHDOTT) e as organizações de procura de órgãos (OPOs) notificam as centrais de notificação, captação e distribuição de órgãos estaduais (CNCDOS).[viii] Na ausência de receptores compatíveis no estado, a central nacional de notificação, captação e distribuição de órgãos do SNT (CNNCDO) pode notificar CNCDOS de outros estados.9 Nessas situações, a Força Aérea Brasileira, em conjunto com as polícias militares e corpos de bombeiros estaduais, tem papel crucial no auxílio da logística do processo de doação.
Vale ressaltar que desafios ainda persistem. Dados de 2022 indicam que o número de doadores brasileiros por milhão de habitantes (pmp) é de 15,16, o que é baixo quando comparado com países como os Estados Unidos (44,52 pmp), Espanha (47,02 pmp), Portugal (31,39 pmp) e Islândia (33,33 pmp).[ix] No Brasil, essa disparidade é aumentada a depender da região. Em 2023, Sul e Sudeste apresentaram maiores taxas de doadores (36,50 pmp e 22,20 pmp, respectivamente), ao passo que as regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte apresentaram taxas mais baixas (14,10 pmp, 13,00 pmp e 7,00 pmp, respectivamente).6 A recusa das famílias, em cerca de 40% dos casos, é a principal barreira para o aumento dos transplantes no Brasil, que conta com 45.000 pessoas na lista de espera por órgãos.[x],[xi]
Apesar desses desafios, houve uma melhora significativa, com um aumento dos doadores de 15,16 pmp em 2022 para 19,9 pmp em 2023.6,10 Esse progresso se deve a um trabalho de conscientização do público, treinamento de equipes, formação de profissionais de saúde e gestores especializados, e ainda aplicação de novas tecnologias.5 Atualmente a lei brasileira requer a autorização e familiares de pacientes vítimas de morte encefálica para permitir a doação. Em países como a Espanha e Suíça, a doação de órgãos é presumida, ou seja, todo·a paciente é um·a potencial doador·a, a não ser que se declare formalmente o contrário.1,[xii] Curiosamente, a lei de 1997 que criou o SNT previa o consentimento presumido para doação de órgãos, mas esse trecho foi revisado em 2001 em favor do atual modelo.9,12
Outra estratégia que o Brasil poderia adotar seria a regulamentação de doadores após parada cardiocirculatória, como já implementado em países como a França, Dinamarca e EUA.[xiii],[xiv],[xv] Atualmente, somente pacientes com morte encefálica comprovada podem ser considerados doadores de órgãos.[xvi] O doador vivo, segundo o Ministério da Saúde, “é a pessoa maior de idade e juridicamente capaz, saudável e que concorde com a doação, desde que não prejudique a sua própria saúde”.17 Entretanto, a implementação de um programa nacional de recuperação de órgãos para doadores após parada cardiocirculatória requer um alto investimento em treinamento de equipes de regaste e unidades de terapia intensivas (UTIs), programas de conscientização da população e investimentos em tecnologias de preservação de órgãos.
Em suma, o Brasil, como detentor do maior programa público de transplantes do mundo, demonstra um comprometimento significativo e exemplar para com a saúde pública e a vida de seus cidadãos. Apesar dos avanços notáveis, há desafios substanciais a serem superados, como o aumento das taxas de doação e a redução da disparidade regional. Estratégias como a adoção de doação presumida e a regulamentação de doadores após parada cardiocirculatória podem potencialmente aumentar a disponibilidade de órgãos. Com contínuos investimentos em conscientização, treinamento e tecnologias, o Brasil pode fortalecer ainda mais seu sistema de transplantes e continuar servindo como um modelo global de saúde pública e equidade.
Referências
[i] BBC. (2023, 27 de agosto). Como Brasil criou e mantém maior sistema público de transplantes do mundo. G1. Recuperado em 27 de maio de 2024, de https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/27/como-brasil-criou-e-mantem-maior-sistema-publico-de-transplantes-do-mundo.ghtml
[ii] Pêgo-Fernandes, P. M., Pestana, J. O. M., & Garcia, V. D. (2019). Transplants in Brazil: where are we?. Clinics (Sao Paulo, Brazil), 74, e832. https://doi.org/10.6061/clinics/2019/e832
[iii] Soares, Letícia Santana da Silva, Brito, Evelin Soares de, Magedanz, Lucas, França, Fernanda Alves, Araújo, Wildo Navegantes de, & Galato, Dayani. (2020). Transplantes de órgãos sólidos no Brasil: estudo descritivo sobre desigualdades na distribuição e acesso no território brasileiro, 2001-2017. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 29(1), e2018512. Epub 05 de maro de 2020.https://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742020000100014
[iv] de Andrade, L. G. M., Barbosa, A. M. P., da Rocha, N. C., de Almeida Cardoso, M. M., de Almeida, J. T. C., Machado-Rugolo, J., Arantes, L. F., Pontes, D. F. S., & Ferreira, G. F. (2022). Impact of the COVID-19 Pandemic on Solid Organ Transplant and Rejection Episodes in Brazil’s Unified Healthcare System. Journal of clinical medicine, 11(21), 6581. https://doi.org/10.3390/jcm11216581
[v] Ministério da Saúde. (2024, 12 de janeiro). Brasil registra o maior número de transplantes de órgãos em dez anos. Governo do Brasil. Recuperado em 27 de maio de 2024, de https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/janeiro/brasil-registra-o-maior-numero-de-transplantes-de-orgaos-em-dez-anos
[vi] Registro Brasileiro de Transplantes. (2023). Dados Numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro / setembro – 2023. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Recuperado de http://www.abto.org.br/abtov03/default.aspx?mn=457&c=0&s=0
[vii] Registro Brasileiro de Transplantes. (2024). Dados Numéricos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro / março – 2024. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Recuperado de https://site.abto.org.br/wp-content/uploads/2024/05/RBT-2024-jan-mar_POPULACAO.pdf
[viii] Pauli, J. (2019). Doação organizacional em face ao mercado de órgãos: uma análise do modelo brasileiro de transplantação. Nova Economia, 29 (1). https://doi.org/10.1590/0103-6351/3528
[ix] Global Observatory on Donation and Transplantation. (n.d.). Data charts and tables. Retrieved on May 28, 2024 from https://www.transplant-observatory.org/data-charts-and-tables/chart/
[x] Bittencourt, P. L., Codes, L., Hyppolito, E. B., Cesar, H. F., Moura-Neto, J. A., & Gomes Ferraz, M. L. (2022). Attitudes of the Brazilian Population Toward Organ Donation. Kidney international reports, 7(12), 2737–2740. https://doi.org/10.1016/j.ekir.2022.09.009
[xi] Medina-Pestana, J. O., Vaz, M. L., & Park, S. I. (2002). Organ transplant in Brazil. Transplantation proceedings, 34(2), 441–443. https://doi.org/10.1016/s0041-1345(02)02588-5
[xii] Allen, M. (2024, May 2). Why the Swiss are donating more organs for transplant. SwissInfo. Retrieved on May 28, 2024 from https://www.swissinfo.ch/eng/science/why-the-swiss-are-donating-more-organs-for-transplant/76846327
[xiii] Antoine, C., Mourey, F., Prada-Bordenave, E., & Steering committee on DCD program (2014). How France launched its donation after cardiac death program. Annales francaises d’anesthesie et de reanimation, 33(2), 138–143. https://doi.org/10.1016/j.annfar.2013.11.018
[xiv] Mikkelsen, M. K., Krogh, C., Akgül, C., Rosenlund, C., Birn, H., Welling, K. L. K., & Perch, M. (2023). Organ donation after circulatory death in Denmark. Ugeskrift for laeger, 185(38), V03230155.
[xv] Hoffman, J. R. H., McMaster, W. G., Rali, A. S., Rahaman, Z., Balsara, K., Absi, T., Levack, M., Brinkley, M., Menachem, J., Punnoose, L., Sacks, S., Wigger, M., Zalawadiya, S., Stevenson, L., Schlendorf, K., Lindenfeld, J., & Shah, A. S. (2021). Early US experience with cardiac donation after circulatory death (DCD) using normothermic regional perfusion. The Journal of heart and lung transplantation : the official publication of the International Society for Heart Transplantation, 40(11), 1408–1418. https://doi.org/10.1016/j.healun.2021.06.022
[xvi] Ministério da Saúde. (n.d.). Quais são os tipos de doador. Portal Gov.br. Retrieved May 27, 2024, from https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/snt/doacao-de-orgaos/quais-sao-os-tipos-de-doador