Artigo de Renato Bandeira de Mello, bolsista apoiado pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University.
Quando o assunto é saúde, diagnósticos de doenças, tratamentos ou acesso às ações de saúde pública, a sociedade opta, quase que por senso comum, por escolher explicações e resoluções simplistas. A simplificação de entendimentos como dicotomizações antagônicas (ex.: certo ou errado; tratamento bom ou ruim; saúde ou doença) é uma forma usual de o ser humano lidar com cenários complexos e desconfortáveis. Buscamos alinhar interpretações diversas e soluções simples para problemas difíceis e, assim, evitamos a dissonância cognitiva causada por eles[1]. Tal reducionismo quanto à compreensão de certas questões nos traz sensação de controle, de resolutibilidade, de tranquilidade ou até mesmo de resignação diante de um diagnóstico. Concluímos que não há mais saúde quando uma condição clínica se torna evidente. Ou então, que a cura é uma questão de “luta”, mesmo quando as probabilidades científicas e técnicas mostram o contrário. Isso leva à interpretação equivocada de que saúde significa ausência de doença, e não é este o caso.
Por analogia, tendemos a pensar que saúde pública significa tão somente garantir assistência à população; ou seja, diagnosticar e tratar doenças, valer-se de medicamentos e intervenções cirúrgicas. Ora, a definição deste conceito vai além…
A história moderna da saúde pública, ou a chamada Saúde Pública 3.0, passa, entre outras coisas, pela implementação de um programa amplo de saúde para a população rural de Jamkhed, na Índia, o Comprehensive Rural Health Project.[2] O casal de médicos Raj e Mabelle Arole, após contratempos, encontraram o devido apoio político em uma cidade onde a população tinha verdadeira voz e participação para garantir seus direitos. Raj e Mabelle queriam o todo: um projeto de saúde pública amplo, multidimensional, que não se resumisse ao cuidado de doenças estabelecidas. Portanto, de forma sábia e alinhada aos princípios da construção de projetos em saúde pública, optaram por ouvir a comunidade e envolvê-la desde cedo no processo decisório. Eis que os cidadãos queriam um projeto de “saúde populacional”, mas, em suas palavras, clamavam por assistência a doenças. A população não parecia pedir por atenção primária em seu senso amplo. Também não disseram: “queremos que vocês cuidem do ar, da água; que vocês mudem nosso comportamento sobre higienização das mãos e nos garantam alimentos mais saudáveis”. Comportamento semelhante costuma acontecer em passeatas e protestos, com pessoas carregando faixas, literalmente, dizendo “precisamos de saúde” ao reivindicar hospitais, consultas médicas, recursos diagnósticos e terapêuticos.
Em resumo, os médicos ouviram a população, implementaram as prioridades do povo relacionadas à assistência médica e, depois, ao longo dos anos, com a confiança e apoio da comunidade, escalonaram suas ações de saúde pública em múltiplos níveis e graus de complexidade, tornando-se um modelo a ser seguido. Este trabalho é uma das bases de referência para a Declaração de Alma-Ata da Organização das Nações Unidas, de 1978, primeira declaração mundial exaltando a importância da atenção primária à saúde.[3]
Se saúde não significa ausência de doença, e saúde pública não se resume a assistência médica, por que tal interpretação é recorrente?
Segundo a Organização Mundial da Saúde[4], “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças.” Pode parecer utópico, mas com este conceito em mente, os objetivos de qualquer ação de promoção e proteção de saúde se tornam mais profundos e audaciosos. Ganham perspectivas longitudinais, com as devidas metas de médio e longo prazos. E, entre o que é ideal e o que é possível, devemos (ou deveríamos) desenhar e implementar projetos, buscando o melhor resultado alcançável dentro de um conceito amplo. Da promoção de saúde, passando pela prevenção primordial, ao tratamento de doenças e situações complexas; do período pré-natal aos cuidados de fim de vida.
CEA Winslow, um dos maiores nomes da medicina moderna, definiu em 1920 que “Saúde Pública é a ciência e a arte de prevenir doenças, prolongar a vida e promover a saúde através de esforços organizados e escolhas informadas da sociedade, organizações, comunidades públicas e privadas, e indivíduos.”[5] Esse conceito é um pilar de sustentação que, com o passar dos anos, abarcou em seus limites as mudanças do mundo promovidas pelo avanço tecnológico, da medicina, e, principalmente, o entendimento de que questões sociológicas são determinantes-chave da trajetória de saúde de uma pessoa. Portanto, o conceito de saúde pública é vivo, segue em contínua construção, alinhando-se aos valores da sociedade, de mãos dadas com o estado da arte científica ciência e o seu entendimento ao longo do tempo.
Em 2016, entendendo que novos limites conceituais de saúde pública deveriam ser estabelecidos, K. B. DeSalvo e P. W. O’Carroll[6] e colaboradores abrem o artigo conceitual sobre Saúde Pública 3.0 com a seguinte posição:
– “É tempo de expandir corajosamente o escopo e o alcance da saúde pública para abordar todos os fatores que promovem a saúde e o bem-estar, incluindo aqueles relacionados com o desenvolvimento econômico, educação, transporte, alimentação, ambiente e habitação.”
Os autores então propõem uma nova definição, aqui apresentada em livre tradução por este autor (original disponível no rodapé):
- “Saúde Pública 3.0: uma versão moderna que enfatiza a relevância da colaboração intersetorial para promoção de ações ambientais e de políticas públicas com alcance sistêmico a ponto de afetar diretamente os determinantes sociais da saúde.” [7]
Evidências científicas acumuladas nas últimas décadas demonstraram robustamente que comportamentos como tabagismo, estilo de vida sedentário, e padrões alimentares ruins são as principais causas de doenças, de morte e de anos saudáveis perdidos. E, de forma mais marcante, que tais comportamentos estão enraizados e são influenciados fortemente pelos ambientes físicos e sociais nos quais as pessoas vivem, aprendem, trabalham e interagem ao longo de todo curso de vida. (K. B. DeSalvo, 2016)
Enfim, para definitivamente entender que saúde não significa ausência de doença e que saúde pública não se faz somente com assistência às doenças, seguem alguns dados:
- Nos últimos 120 anos a expectativa média de vida ao nascer de uma pessoa aumentou de 32 anos em 1900 para cerca de 72 anos em 2020;[8]
- A partir do final do século XIX e início do século XX, a expectativa média de vida no planeta começa a aumentar vertiginosamente e de forma linear. São em média 40 anos a mais.
- Desses 40 anos ganhos, 8 estão relacionados ao aumento da qualidade e do acesso à assistência em saúde, também chamado popularmente de “evolução da medicina”;[9] Os outros 32 anos ganhos são resultado direto de ações de saúde pública não atreladas à assistência;
- Implementação de ações para promover saneamento básico, qualidade do ar, alimentação segura, controle de doenças infecciosas (água limpa, vacinação), melhoria de fatores socioeconômicos, melhorias do ambiente físico (habitação segura) e redução de comportamentos de risco (tabagismo, sedentarismo e má alimentação, uso de álcool e sexo desprotegido) mudaram o curso da longevidade humana.
Como se vê, saúde depende de diversos fatores que vão além da ausência de doença. E saúde pública consiste em agir em nível populacional, de forma sistematizada, considerando a complexa inter-relação de fatores multisistêmicos para entregar projetos cujos objetivos principais são promoção de saúde e prevenção de doenças, do nível micro (individual) ao macro (global).
Para que isso aconteça, é preciso aplicar o método científico epidemiológico, ponto-chave do processo para o devido escrutínio de dados empíricos: desenvolvimento de hipóteses; desenho de estudos que sejam metodologicamente acurados; implementação de pesquisa que favoreça qualidade dos dados coletados; boas práticas analíticas; interpretação assertiva dos resultados; e conclusões suportadas pelos resultados testados. A partir do embasamento de dados epidemiológicos é que se faz saúde pública de qualidade. A partir de um diagnóstico dos determinantes de comprometimento de saúde de um grupo de pessoas, poderemos então construir em conjunto com a população ações que realmente possam mudar o curso de vida não só de indivíduos, mas de todo um grupo social.
Como disse Professora M.E. Hughes:
- “In Public Health, we choose not to ignore complexity!”
Afirmar que saúde é apenas “dedicação” de alguém ao próprio corpo, além de ser reducionista, é uma afirmação que ignora completamente a heterogeneidade humana, a interação entre aspectos físicos e mentais, assim como as inequidades responsáveis pelos diferentes comportamentos, exposições e acesso aos serviços de saúde. Ora, tais diferenças são moldadas e explicadas por determinantes sociais, e os enraizamentos cognitivos, físicos e psíquicos atrelados a tais determinantes podem influenciar comportamentos ao longo de todo o curso de uma vida.
[1] Segundo Daniel Kahnemann, eu seu livro “Rápido e Devagar” (2013), dissonância cognitiva é o estresse psicológico gerado por ideias contraditórias ou por conceitos complexos que não se explicam de forma intuitiva ou emocional. Usualmente ocorre quando tais ideias ou situações entram em choque direto com nossos pensamentos pré-estabelecidos. A solução que a mente encontra para se livrar do sofrimento é ignorar a complexidade do conceito ou simplesmente refutar rapidamente ideias contraditórias.
[2] Perry HB, Rohde J. The Jamkhed Comprehensive Rural Health Project and the Alma-Ata Vision of Primary Health Care. Am J Public Health. 2019 May;109(5):699-704. doi: 10.2105/AJPH.2019.304968. Epub 2019 Mar 21. PMID: 30896989; PMCID: PMC6459630.
[3] International Conference on Primary Health Care. Declaration of Alma-Ata. Alma-Ata, USSR, 6-12 September 1978. Available at: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/documents/almaata-declaration-en.pdf?sfvrsn=7b3c2167_2
[4] World Health Organization. Health definition. Available at: https://www.who.int/about/governance/constitution
[5] Steve Kemper. C.-E. A. Winslow, who launched public health at Yale a century ago, still influential today. Yale News, 2015.
Available at: https://news.yale.edu/2015/06/02/public-health-giant-c-ea-winslow-who-launched-public-health-yale-century-ago-still-influe
[6] Karen B. DeSalvo, Patrick W. O’Carroll, Denise Koo, John M. Auerbach, and Judith A. Monroe. Public Health 3.0: Time for an Upgrade. American Journal of Public Health 106, 621_622. doi.org/10.2105/AJPH.2016.303063
[7] Trecho original em Inglês: “Public Health 3.0: a modern version that emphasizes cross-sector collaboration and environmental policy, and systems-level actions that directly affect the social determinants of health.”
[8] Max Roser, Esteban Ortiz-Ospina and Hannah Ritchie. Life Expectancy. Available at: https://ourworldindata.org/life-expectancy
[9] Magnan S, Fisher E, Kindig D, Isham G, Wood D, Eustis M, Backstrom C, Leitz S. Achieving accountability for health and health care. Minn Med. 2012 Nov;95(11):37-9.