Artigo de Isis Gomes, bolsista apoiada pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University
Em 2020, o Ministério da Saúde (MS) e as entidades que representam as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde (CONASS e CONASEMS, respectivamente), responsáveis pela organização do Sistema Único de Saúde (SUS), desenvolveram uma estratégia de longo prazo para fomentar a adoção de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) na saúde brasileira – o que chamamos de saúde digital.
A saúde digital tem como objetivo aumentar a qualidade e ampliar o acesso à atenção à saúde por meio do uso das TICs. Aplicações da saúde visam agilizar o fluxo assistencial, qualificar as equipes de saúde e tornar mais eficaz e eficiente o fluxo de informações para apoio à decisão em saúde, tanto quanto à decisão clínica, de vigilâncias em saúde, de regulação e promoção da saúde, quanto à de gestão. [1] Para exemplificar, isso envolve desde procedimentos remotos, que conhecemos por telemedicina, ferramentas digitais que apoiam a decisão clínica, com ou sem o uso de inteligência artificial (IA), até o uso de sistemas de informação e prontuário eletrônico, que dependem da garantia importante de interoperabilidade para a transmissão segura e correta de dados entre todos os pontos de decisão, dos profissionais de saúde até os gestores do sistema.
A Estratégia de Saúde Digital para o Brasil (ESD) é o principal documento que orienta os esforços governamentais nesse sentido em nosso país. Foi construída a partir da experiência acumulada na última década, desde 2012, com a criação do toolkit para criação de políticas de saúde digital da Organização Mundial de Saúde. [1,2]
Até 2024, a ESD foi operacionalizada por meio do programa ConecteSUS, que inclui iniciativas para informatizar a atenção primária à saúde (Informatiza APS), melhorar a conectividade à internet de unidades básicas em áreas remotas (Conectividade APS) e promover a interoperabilidade dos sistemas de informação em saúde para estabelecer um repositório nacional de dados – a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). [2]
O Informatiza APS, também conhecido como Programa de Apoio à Informatização e Qualificação dos Dados da Atenção Primária à Saúde, foi a iniciativa mais forte da ESD em vigor até abril de 2024. A portaria do programa definia informatização na APS como o uso de sistemas eletrônicos de saúde no ponto de atendimento, com cada consulta devidamente registrada e enviada ao MS de acordo com parâmetros estabelecidos, seguindo mandato de 2016 pelo qual o prontuário eletrônico deveria ser a forma de coleta de dados na APS do SUS. Por meio do Informatiza, o MS financiava as Secretarias Municipais de Saúde para a aquisição de computadores e manutenção da infraestrutura de tecnologia da informação das equipes de APS. [3]
Em contrapartida, os municípios deveriam transmitir mensalmente dados individuais de usuários do sistema, coletados pelas equipes e utilizando prontuário eletrônico integrado aos sistemas de informação do MS. O objetivo era, além de manter a adoção de sistemas de prontuário eletrônico, padronizar o envio mínimo de dados de registros da atenção primária ao MS. [3]
Inicialmente, o programa teve um orçamento planejado de R$ 2,69 bilhões (cerca de US$ 539 milhões), compreendendo 96,4% do orçamento do ConecteSUS ao longo de três anos. No entanto, até junho de 2022, o programa havia recebido R$ 1,18 bilhão (cerca de US$ 237 milhões), ou somente 44,1% do valor projetado, que incrivelmente ainda representou 64% do orçamento de saúde digital do MS desde 2020. [5]
Um aspecto crucial para a implantação do Informatiza é que ele se baseia em uma infraestrutura de sistemas de informação da APS que permitiu o registro e a transmissão de dados individuais de saúde criados no início da década de 2010, com o saber acumulado no uso de sistemas de informação nas duas décadas anteriores.
Desenvolvida em 2011, juntamente com as bases para a ESD, a Estratégia e-SUS APS reconheceu a necessidade de registro e análise de dados em nível individual, e reestruturou o principal sistema de informação em saúde para a APS, aliando o uso mais sofisticado de coleta de dados com grande detalhe e em alta frequência (já usual em ambientes hospitalares), à lógica de organização da atenção primária, com foco no primeiro contato com o sistema de saúde, na assistência continuada ao longo do tempo, e na integralidade do cuidado no nível comunitário.
Seus objetivos também incluíam aprimorar as ferramentas para os profissionais de saúde e gestores, facilitar o monitoramento e a avaliação, e capturar dados para apoiar o financiamento e o desenvolvimento do sistema. Produtos da estratégia e-SUS APS são o PEC – Prontuário Eletrônico do Cidadão, e o SISAB – Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica [6].
Desde sua adoção em 2013, o PEC é o prontuário eletrônico disponibilizado gratuitamente pelo MS às equipes de saúde da atenção primária, e de fácil integração com os sistemas de informação. Junto com o e-SUS APS, que lhe dá suporte, o PEC recebeu investimentos contínuos, passando por atualizações anuais e evoluindo para aplicativos adaptados para coletar dados de várias atividades focadas na comunidade. Esses sistemas também recebem dados digitados no tradicional sistema de formulários – ou “fichas” – ou de prontuários de terceiros. [6]
O SISAB apresenta dados públicos de produção e validação dos registros feitos na atenção primária, inseridos por meio do e-SUS APS e consolidados pelo MS, além de relatórios de dados individuais acessíveis aos gestores da APS. Há uma seção com indicadores referentes, por exemplo, a pessoas cadastradas e acompanhadas pelas equipes para cuidado infantil, saúde materna, saúde feminina e condições crônicas (em agosto de 2024, alguns resultados apresentados pelo portal foram descontinuados e outros migrados para um portal do endereço gov.br: https://relatorioaps.saude.gov.br/. Essas mudanças são parte da transformação da política de financiamento, monitoramento e avaliação da atenção primária, atualmente em curso).
Até o final de 2018, havia diferentes graus de implementação do prontuário eletrônico. Entre cerca de 42.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 49% utilizavam algum tipo de prontuário eletrônico, e entre esses, 50% utilizavam o PEC. [6] Nas regiões Nordeste e Norte, a adoção do prontuário eletrônico era notavelmente menor, com 29% e 26% das UBS, respectivamente. As maiores taxas de adoção foram observadas em cidades com população superior a 500.000 habitantes (69% das UBS) ou até 5.000 habitantes (65% das UBS). A menor adoção ocorreu nas cidades de 20.000 a 50.000 habitantes (cerca de 43% das UBS). [6,7] Os municípios com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) apresentaram uma taxa de adoção mais alta, com 88% das UBS equipadas com prontuário eletrônico, enquanto aqueles com IDH mais baixo ficaram em apenas 19%. [6] Outras características que afetam estruturas locais do SUS – menor renda per capita, altas taxas de enfermeiro·a·s e cobertura da Atenção Primária à Saúde (superior a 80%) por meio da Estratégia Saúde da Família – também estavam associadas à adoção do prontuário eletrônico. [7]
Um estudo abrangendo o período de 2015 a 2017 constatou que a adoção variou amplamente entre municípios de diferentes tamanhos e regiões. Nas capitais estaduais, 57% das eAPS utilizavam prontuário eletrônico; nas cidades do interior, essa proporção era de apenas 35,9%. O tipo de prontuário eletrônico utilizado era diferente entre capitais e não capitais, com 61,6% das eAPS utilizando o PEC nas não-capitais, enquanto nas capitais, 73,1% operavam com outros softwares terceirizados. De acordo com os gestores das UBS, os prontuários eletrônicos estavam associados a vários aspectos de qualidade e acesso, incluindo atendimento de primeiro contato, fidelidade do usuário e treinamento para classificação de risco, mas outros aspectos variavam muito. [7]
Esse cenário de desigualdades exemplifica por que a digitalização da APS requereu investimentos vultosos mesmo em 2020, o que levou à criação do Informatiza APS.
Em 2019, a adoção de cadastro de usuários como critério de financiamento federal do SUS induziu uma nova abordagem para estabelecer as conexões de atendimento entre a população e as equipes, rejeitando a ideia que a responsabilidade de atendimento deveria se pautar pela provisão de cuidado a toda a população residente no território. [8] Essa mudança dependia de que cada cidadão tivesse registro de dados adequados, além da provisão de serviços, naturalmente.
O cálculo histórico de cobertura era o número de pessoas cobertas por cada equipe de APS implantada no nível municipal, dividido pela população total residente de cada município – hh cujas necessidades deveriam ser atendidas pelo SUS, dado que é um sistema universal. O número de pessoas cobertas por cada equipe é um parâmetro de capacidade ideal definido nacionalmente. Após 2020, o número de pessoas que cada equipe deveria atender foi ampliado, e os cadastros foram adotados como o novo numerador utilizado para medir a cobertura efetiva, e não mais o parâmetro ideal estimado, reacendendo a discussão sobre a real capacidade de atendimento e a composição ideal das equipes de atenção primária. Em 2021, os cadastros, de fato, passaram a substituir o indicador usual de cobertura da APS.
A mudança nos critérios de financiamento federal da atenção primária, de um modelo baseado no pagamento fixo per capita, no número de equipes implantadas e em critérios de avaliação da qualidade, para um modelo de capitação e indicadores de desempenho, gerou preocupações sobre seu impacto na garantia de que toda a população deve ter acesso garantido à saúde pelo SUS – o princípio da universalidade. A discussão sobre se o financiamento por cadastro foi necessáro para uma forte expansão da qualidade e dos registros de dados na atenção primária ainda não está encerrada.
Em fevereiro de 2024, um novo programa chamado SUS Digital foi lançado, com a adesão de 99,9% dos municípios brasileiros e investimentos robustos, que já superam R$230 milhões apenas na primeira fase de um total de três do programa (ou US$46 milhões). [9, 10] Este acompanha o crescimento do orçamento voltado à saúde digital, que em 2023 atingiu o pico de R$ 1,08 bilhão (cerca de U$201.5 milhões), a maior dotação dos últimos dez anos. [4, 11]
O novo carro chefe da saúde digital tem o potencial de propiciar mais um salto na adoção de saúde digital no Brasil, por garantir flexibilidade para que os gestores do SUS planejem e decidam entre ações de aprimoramento da interoperabilidade dos sistemas de informação em saúde, expansão da telemedicina e do uso de IA para apoiar a decisão clínica, tecnologias marginais no sistema de saúde brasileiro, mas que mostram resultados promissores em países ricos. Além disso, o programa visa promover o fortalecimento da participação dos cidadãos por meio de aplicativos móveis, garantindo uma avaliação preliminar e o monitoramento e avaliação das ações do poder público.
O programa visa tornar o sistema mais eficiente, equitativo e responsivo às necessidades da população. Será crucial monitorar sua implementação e avaliar seu impacto nos próximos anos quanto a resultados de gestão e também de melhoria de qualidade da assistência. A exemplo da nossa trajetória, desde a criação do modelo de sistemas como e-SUS APS e o PEC, até a associação da digitalização a incentivos financeiros para a atenção primária, o desafio para a expansão da saúde digital deve ser beneficiar o conjunto da população brasileira, melhorando o acesso à saúde pública, mas também visando superar as históricas desigualdades regionais, de ruralidade, de porte populacional, e de desenvolvimento humano que marcam o SUS.
[1] National e-Health Strategy Toolkit https://www.who.int/publications/i/item/national-ehealth-strategy-toolkit
[2] Estrategia de Saúde Digital para o Brasil 2028 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estrategia_saude_digital_Brasil.pdf
[3] Portaria nº 2.983, de 11 de novembro de 2019 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.983-de-11-de-novembro-de-2019-227652196
[4] Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) – Boletim n. 4 de Monitoramento do Orçamento da Saúde Digital
https://agendamaissus.org.br/evidencias/
[5] 3o Boletim de Monitoramento da ESD28.
[6] Cielo et al. Implementation of the e-SUS Primary Care Strategy: an analysis based on official data. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8869366/
[7] Valdes G, Souza AS. Use of electronic health records and primary health care accessibility according to data from the third cycle of the PMAQ-AB. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38198323/
[8] Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/previne-brasil/arquivos/portaria-no-2-979-de-12-de-novembro-de-2019.pdf
[9] Portaria no 3.232, de 1 de março de 2024. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-3.232-de-1-de-marco-de-2024-546278935
[10] Fundo Nacional de Saúde. Primeira etapa do SUS Digital tem adesão de 99,9% dos municípios brasileiros https://portalfns.saude.gov.br/primeira-etapa-do-sus-digital-tem-adesao-de-999-dos-municipios-brasileiros/#:~:text=dos%20munic%C3%ADpios%20brasileiros-,Primeira%20etapa%20do%20SUS%20Digital%20tem,99%2C9%25%20dos%20munic%C3%ADpios%20brasileiros&text=Com%20o%20objetivo%20de%20ampliar,etapa%20do%20Programa%20SUS%20Digital
[11] Fundo Nacional de Saúde. Ministério da Saúde conclui repasse de R$ 232 milhões em recursos da 1ª etapa do SUS Digital. https://portalfns.saude.gov.br/ministerio-da-saude-conclui-repasse-de-r-232-milhoes-em-recursos-da-1a-etapa-do-sus-digital/#:~:text=Foram%20destinados%20R%24%2069%2C6,homologou%20as%20ades%C3%B5es%20ao%20programa