Artigo de Renato Bandeira de Mello, bolsista apoiado pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University.

O mundo vem passando por processo de envelhecimento populacional significativo nas últimas quatro décadas, o que se traduz pelo aumento proporcional do número de idoso·a·s em comparação ao de adultos mais jovens e crianças[i]. Tal fenômeno ocorre de forma acelerada, especialmente em países de baixa e média renda, como o Brasil. Censos demográficos do IBGE demonstram que a proporção de pessoas com 60 anos ou mais se elevou de 6,8% em 1980 para 10,8% em 2010, até chegar em 15,6% em 2022[ii]. Um crescimento absoluto de 8 para 32 milhões de idosos em 40 anos. Nesse mesmo período, a expectativa média de vida ao nascer em nosso país aumentou de 62,5 para 75,5 anos.  Essa realidade retrata uma enorme conquista da humanidade: a longevidade coletiva, que traduz em grande parte a efetividade das ações sistêmicas e sistematizadas de saúde pública. (Veja aqui link de artigo anterior sobre esse conceito). Sumariamente, diz respeito às intervenções direcionadas às complexas interações de múltiplos domínios da saúde que são amparadas e regulamentadas por políticas públicas[iii]. Por exemplo, implementação de sistemas de saneamento básico, acesso à água potável e alimentos saudáveis; moradia segura, trabalho e condições de sustento financeiro; monitoramento e prevenção de epidemias, assim como vacinação e acesso aos sistemas de assistência à saúde. A integração de ações concomitantes modulou significativamente a redução de mortalidade precoce[iv].

O direito de viver e envelhecer foi posto em prática. E nós (humanidade) fomos adiante. Hoje, ao comemorar seus 60 anos, um·a brasileiro·a pode esperar viver mais 22 anos em média. Aos 75 anos, mais 12[v].

Porém, há também consequências desse processo que precisam ser apontadas, debatidas e abordadas, considerando a complexidade do fenômeno. Sabidamente, há grande heterogeneidade nessas trajetórias de envelhecimento. Propensões individuais, comportamentos e exposição a fatores de risco para as doenças são modulados por aspectos hierarquicamente mais amplos, tais como as condições socioeconômicas, educação de qualidade, oportunidades de emprego com justa recompensa financeira e acesso às benesses providas pelos múltiplos setores que compõem o aparato de promoção e proteção de saúde de um país. Talvez se possa aventar um paralelismo entre a heterogeneidade do envelhecimento e a heterogeneidade (desigualdade) de acesso a tais recursos.

Dentre as consequências atreladas à redução de mortalidade precoce e ao envelhecimento populacional está a modificação do padrão de doenças predominantes e das causas de morte. De um cenário em que infecções e doenças transmissíveis explicavam considerável parte dos óbitos, migramos para um mundo em que as doenças crônicas são epidêmicas[vi]. De um paradigma médico focado em “cura do mal” passamos a outro em que se otimizou a sobrevida após doenças agudas (infarto do coração, câncer, AVC etc), e em que a necessidade de cuidados de longa duração centrados no·a paciente se tornou protagonista[vii]. Isto é, diagnóstico e controle de doenças crônicas, prevenção de novas doenças e complicações das já existentes, reabilitação de funções comprometidas e alívio de sintomas[viii]. Apesar de nosso sistema de atenção primária à saúde (APS) ser robusto, há muito espaço para melhorias, sobretudo quando o assunto é o cuidado dispensado ao.à idoso.a, considerando suas inúmeras peculiaridades e complexidades fisiológicas, fisiopatológicas, sociais, assim como potenciais vulnerabilidades que impõem maior risco de complicações não intencionais relacionadas aos procedimentos e tratamentos prescritos.

Então, como mudar a realidade de atenção às pessoas idosas em um sistema tão heterogêneo e que já está sobrecarregado? Com certeza não será através da proposição de projetos extensos e pouco flexíveis.

Distintas estratégias de cuidado ao·à idoso·a, respaldadas por conhecimentos e conceitos de gerontologia, foram experimentadas na APS ao longo do tempo. De centros de especialistas, e caderneta de saúde da pessoa idosa[ix] a programas implementados por parcerias público-privadas[x]. Porém, apesar de seguirem preceitos apropriados e de se ancorarem em instrumentos avaliativos aceitos pela comunidade de especialistas da área, falharam em alcançar aceitação e permeabilidade em cenários de vida real[xi]. Ou por incluírem avaliações demasiadamente complexas, ou por imputarem incremento de tempo de consulta em cenários assistenciais que já enfrentam sobrecarga e esgotamento, ou por se basearem em estratificações de risco geradas por scores que combinam domínios que não são intrinsecamente relacionados (baixa qualidade do constructo psicométrico; ou por serem essencialmente médico-centrados ou médico-dependentes, ou ainda por falhas atreladas a problemas de conexão entre níveis da rede de saúde.

Na opinião deste autor, algumas barreiras para o avanço de tais projetos de cuidado voltado ao·à idoso·a podem ser apontadas. Dentre algumas, vale citar a complexidade dos instrumentos escolhidos, dificuldades atreladas a extensas avaliações de múltiplos domínios combinados sem a devida validação e, talvez a mais importante, as barreiras associadas à precária colaboração entre as diferentes partes interessadas. O trabalho conjunto entre agentes políticos e especialistas é crucial, entretanto, não é tudo. A aceitabilidade e factibilidade necessárias para o desenvolvimento e implementação de um projeto de cuidado com a pessoa idosa na APS passa pela efetiva colaboração que inclua as duas partes mais diretamente interessadas: os trabalhadores da área e o público-alvo, ou seja, agentes de saúde e idosos usuários de serviços da APS. E mais, tais projetos precisam ser flexíveis e adaptáveis às diferentes realidades locorregionais de um país continental e tão desigual. Pacotes entregues por especialistas, de cima para baixo, podem até parecer funcionar por um período de tempo enquanto há supervisão e monitoramento ativo da implementação. Mas, depois, a implementação tende a esmaecer quando o público-alvo (idoso·a·s e agentes de saúde) não faz parte da construção da mudança do paradigma assistencial.

Ações potenciais para otimizar o cuidado da pessoa idosa na APS no Brasil devem começar por extenso mapeamento das estruturas locorregionais para que se possa desenhar projetos alinhados aos recursos físicos e humanos já disponíveis. Precisa-se conhecer as limitações, as fraquezas e as barreiras principais. Também é necessário captar a (sobre)carga de trabalho e as oportunidades de melhorias dentro do sistema, sejam elas  organizacionais ou executivas. Então, a partir dos pontos fortes, delinear estratégias de otimização gradual e escalonável dos serviços para que um novo projeto seja potencialmente implementável com o intuito de gerar melhorias palpáveis e mensuráveis.

Um projeto nesse sentido demandará um grande esforço de todas as partes interessadas. Contudo, os(as) trabalhadores(as) da linha de frente serão os mais impactados pelas decisões de outros. Por isso, para um projeto ser aceito e executado, precisará ter objetivos muito claros que deverão ser comunicados efetivamente e repetidamente para que possa fazer e trazer sentido para quem o aplicará. Logo, haverá que se investir pesadamente em treinamento e retreinamento. Agentes de saúde treinados prepararão outros para que conheçam as especificidades do atendimento para então entregar as melhores condutas no sentido de agregar qualidade de vida às individuais trajetórias de envelhecimento.

Um força-tarefa nacional precisará estabelecer parâmetros para que se chegue a um projeto-mãe. Um time multidisciplinar que congregará epidemiologistas, políticos, especialistas em envelhecimento, especialistas em APS, sociedades científicas das áreas, a academia, líderes comunitários, líderes de grupos representativos da população idosa e, principalmente, trabalhadores da APS, pessoas idosas e usuários do sistema. Tudo orquestrado pelo Ministério da Saúde. Posteriormente, através de balizamentos de regulamentações e pelo estabelecimento/cumprimento de legislação apropriada, o projeto poderá então, seguindo os mesmos formatos acima descritos, ser implementado de forma descentralizada, adaptado às diferentes realidades da APS. E caberá à força-tarefa monitorar e interpretar indicadores de implementação pré-estabelecidos para que se possa estabelecer loops de feedback, visando a garantir o melhor resultado nesta fase. Após implementado, o contínuo monitoramento de indicadores de efetividade permitirá entender o real impacto desse projeto de cuidado ao·à idoso·a. Assim, se entenderá não somente a permeabilidade, mas a aceitação pelos agentes diretamente interessados e o quanto, de fato, o programa está funcionando na prática. E, se não, o que deverá ser ajustado e melhorado para modificar a atual realidade. E assim por diante…

Há que se pensar em um projeto-mãe alinhado à lógica do Programa de Atenção Integrada para a Pessoa Idosa (ICOPE) e do pacote de Cuidados de Longa Duração, ambos propostos pela OMS. Ete é um ponto de partida robusto, já estruturado e que vem sendo implementado em diversos países do mundo, incluindo vizinhos da América Latina.

[i] World Health Organization. World Report on Ageing and Health, 2015. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/186468/WHO_FWC_ALC_15.01_por.pdf?sequence=6

[ii] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro, 2022. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38186-censo-2022-numero-de-pessoas-com-65-anos-ou-mais-de-idade-cresceu-57-4-em-12-anos

[iii] DeSalvo KB, Wang YC, Harris A, Auerbach J, Koo D, O’Carroll P. Public Health 3.0: A Call to Action for Public Health to Meet the Challenges of the 21st Century. Prev Chronic Dis 2017;14:170017. DOI: http://dx.doi.org/10.5888/pcd14.170017

[iv] Michael R. Haines. The urban mortality transition in the United States, 1800-1940. Annales De Démographie Historique, 2001 (1): 33- 64.

[v] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tábuas Completas de Mortalidade, 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9126-tabuas-completas-de-mortalidade.html?edicao=38448&t=resultados

[vi] McKeown RE. The Epidemiologic Transition: Changing Patterns of Mortality and Population Dynamics. Am J Lifestyle Med. 2009 Jul 1;3(1 Suppl):19S-26S. doi: 10.1177/1559827609335350. PMID: 20161566; PMCID: PMC2805833.

[vii] Johansson, S., Rosengren, A., Young, K. et al. Mortality and morbidity trends after the first year in survivors of acute myocardial infarction: a systematic review. BMC Cardiovasc Disord 17, 53 (2017). https://doi.org/10.1186/s12872-017-0482-9.

[viii] World Health Organization. Long-term care for older people package for universal health coverage, 2024. Disponível em: file:///Users/renatobandeirademello/Downloads/9789240086555-eng.pdf.

[ix] Ministério da Saúde, Brasil. Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderneta_saude_pessoa_idosa.pdf

[x]  Ministério da Saúde. Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. Nota Técnica Para Organização Da Rede De Atenção À Saúde Com Foco Na Atenção Primária À Saúde

E Na Atenção Ambulatorial Especializada – Saúde Da Pessoa Idosa, 2019.

[xi] Lívia Pereira Coelho, Luciana Branco da Motta, Célia Pereira Caldas. Rede de atenção ao idoso: fatores facilitadores e barreiras para implementação. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28(4), e280404, 2018 https://doi.org/10.1590/S0103-73312018280404