Artigo de Cecília de Sousa, médica radio-oncologista apoiada pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University

O câncer é atualmente uma das principais causas de mortalidade e morbidade no Brasil. Segundo o INCA (Instituto Nacional de Câncer), são estimados 704 mil novos casos  por ano no triênio 2023-2025. Diante desse cenário, é natural pensarmos em maneiras de prevenir essa doença.

A prevenção pode ocorrer em vários níveis e com diferentes intuitos. Prevenção primária engloba ações que visam a evitar que pessoas saudáveis tenham determinada doença. Por exemplo, não fumar tem o potencial de evitar diversos casos de câncer, como pulmão, cabeça e pescoço, esôfago, e bexiga. A vacina do HPV é outro exemplo, capaz de prevenir tumores como o câncer de colo uterino.

Já a prevenção secundária tem como alvo pessoas que já têm a doença, mas num estágio ainda inicial e, por isso, ainda não apresentam sintomas (figura 1). A prerrogativa desses programas é que o tratamento em estágios iniciais será mais eficaz.

Quando pensamos em rastreamento, é natural imaginar que todos os cânceres deveriam ser rastreados periodicamente, afinal, somos constantemente expostos ao jargão “diagnóstico precoce leva a desfechos melhores”. Infelizmente, esse raciocínio não se aplica a todos os tumores, como, por exemplo, os de crescimento lento e prognóstico muito favorável, ou no caso daqueles com crescimento muito rápido e agressivo. Em resumo, o rastreamento só será eficaz quando o tratamento precoce de fato melhorar o prognóstico.

Além disso, o rastreamento também pode trazer riscos, como resultados falsos positivos ou diagnósticos de doenças malignas indolentes.  Isso pode levar a procedimentos complementares  que estão associados a riscos, danos não intencionais e também  possíveis impactos psicológicos para o(a) paciente. Outro ponto, também relevante, são os custos financeiros para o sistema de saúde. Seus orçamentos são finitos e precisamos investir em estratégias que são de fato efetivas.

Mas como saber o que e quando rastrear? A resposta a essa pergunta é geralmente obtida a partir de estudos robustos que avaliam diferentes formas de rastreamento e comparam sua eficácia. Em alguns casos, a ciência ainda está buscando a melhor estratégia, e é importante que o(a) paciente entenda essas nuances para decisão compartilhada junto ao(à) seu(sua) médico(a). Por vezes, recomendações de diferentes entidades podem variar, e isso reflete considerações distintas de custo-benefício, atreladas às incertezas científicas ainda presentes.

De acordo com o United States Preventive Task Force (USPTF), atualmente, para a população geral, temos quatro tumores com rastreamento com alto nível de evidência: colorretal, mama, colo uterino e pulmão. O de câncer de próstata deve ser individualizado com cada paciente e atualmente não é recomendado pelo Ministério da Saúde. Abaixo, seguem detalhes específicos de cada recomendação.

Câncer de mama: é recomendada mamografia a cada dois anos para mulheres com idade entre 50 e 74 anos. Mulheres de 40 a 49 anos ou de alto risco devem ter conduta individualizada.

O grupo de alto risco inclui pessoas que possuem uma mutação genética nos genes BRCA 1/2 ou que têm parentes de primeiro grau (mãe ou pai) com essa mutação comprovada, assim como aquelas com síndromes genéticas como Li-Fraumeni, Cowden e outras. Esse grupo inclui ainda  mulheres com os seguintes antecedentes:

  • mãe, irmã ou filha diagnosticada com câncer de mama antes dos 50 anos;
  • parente de primeiro grau diagnosticado com câncer de mama em ambos os seios;
  • parente de primeiro grau diagnosticado com câncer de ovário, independentemente da idade;
  • parente masculino diagnosticado com câncer de mama, não importando a idade.

Por fim, mulheres com histórico pessoal de câncer de mama invasivo, hiperplasia ductal ou lobular atípica, carcinoma ductal in situ ou exposição prévia à radiação no tórax (radioterapia acima do diafragma) antes dos 30 anos também são consideradas de alto risco.

Câncer de colo uterino: o rastreamento é recomendado a partir dos 25 anos em mulheres que já iniciaram atividade sexual. Deve ser feito anualmente por dois anos, e, após dois resultados negativos, os próximos exames serão feitos a cada três anos. O rastreamento deve ser mantido até os 64 anos de idade. Mulheres sem histórico prévio de doença neoplásica pré-invasiva podem interromper o rastreamento se tiverem pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Para mulheres com mais de 64 anos que nunca fizeram o exame citopatológico, recomenda-se realizar dois exames com intervalo de um a três anos. Se ambos os exames forem negativos, elas podem ser dispensadas de exames adicionais. Cabe ressaltar que algumas referências recomendam o início aos 21 anos (como a USPTF), e, em caso de rastreamento com métodos de detecção de DNA HPV, o rastreamento pode ser feito a cada cinco anos.

Colorretal: o rastreamento é recomendado para adultos de 45 a 75 anos, e deve ser individualizado para adultos entre 76 e 85 anos. Pode ser feito por meio de diferentes métodos e a periodicidade depende do método escolhido:

–  Teste de sangue oculto nas fezes de alta sensibilidade (HSgFOBT) ou teste imunocromatográfico fecal (FIT), anualmente;

– Teste de DNA-FIT nas fezes a cada um a três anos;

– Colonografia por tomografia computadorizada a cada cinco anos;

– Sigmoidoscopia flexível a cada cinco anos;

– Sigmoidoscopia flexível a cada 10 anos + FIT anual;

O Ministério da Saúde ainda não tem programa nacional de rastreamento estabelecido. Pacientes de alto risco (história familiar de câncer colorretal ou suspeita de síndrome de Lynch ou Polipose Adenomatosa Familial) devem ser encaminhados para serviço especializado, e pacientes com suspeita de cancer devem ser prioridade para realização de colonoscopia.

Pulmão: o rastreamento de cancer de pulmão é recomendado apenas em adultos de 50 a 80 anos que tenham um histórico de tabagismo de 20 anos-maço (número de maços por dia multiplicado por anos em que o(a)  paciente fumou) e que atualmente fumem ou tenham parado de fumar nos últimos 15 anos. Ele deve ser feito anualmente, com tomografia computadorizada de baixa dose, e deve ser interrompido se a pessoa não fuma há 15 anos ou mais. O Ministério da Saúde ainda não tem programa estabelecido de rastreamento.

Populações transgênero: a maioria das recomendações usa designações de sexo ao nascimento. Evidências específicas para a população transgênero ainda estão sendo construídas, e é importante uma discussão individual com o(a) profissional de saúde responsável pelo cuidado. O Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia traz algumas recomendações específicas para nortear o rastreamento. Indivíduos transmasculinos devem seguir as mesmas recomendações de idade específica para rastreamento de mama e colo uterino, desde que ainda os tenham. Indivíduos transfeminios não necessitam de citologia de rotina, caso possuam neovagina;  rastreamento de próstata deve seguir recomendações populacionais; e  o rastreamento de câncer de mama deve ser iniciado após os 50 anos em indivíduos com pelo menos cinco anos de uso de hormônio feminino.

O rastreamento é componente importante de uma estratégia de controle do câncer. É sempre fundamental buscar orientação profissional para cada caso individual. Além disso, vale lembrar que o rastreamento é apenas um dos pilares da prevenção, e devemos também buscar levar uma vida saudável, não fumar, e estar com as vacinas em dia.

Referências

[1] Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2023: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2023. BRASIL. Disponível em https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/numeros/estimativa/introducao

[2] US Preventive Task Force. Cancer Screening. 2024. Disponível em: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/topic_search_results?topic_status=P&category%5B%5D=15&searchterm=

[3] Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 9/2023-COSAH/CGACI/DGCI/SAPS/MS. https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saps/publicacoes/notas-tecnicas/notatecnican9_rastreio.pdf/view

[4] Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Câncer de instetino. Acesso em 29/01/2023. https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/tipos/intestino/versao-para-profissionais-de-saude

[5] American College of Obstetricians and Gynecologists. Health Care for Transgender and Gender Diverse Individuals. Number 823 (Replaces Committee Opinion 512, December 2011, and Committee Opinion 685, January 2017. Reaffirmed 2024). Disponível em: https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/committee-opinion/articles/2021/03/health-care-for-transgender-and-gender-diverse-individuals

[5] CELENTANO, David D.; MHS, Scd; SZKLO, Moyses. Gordis. Epidemiología. Elsevier, 2019.