Artigo de Juliana Farhat, médica especializada em medicina interna e bolsista apoiado pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University
Recentemente, temos enfrentado de maneira consciente diversas epidemias e pandemias, como a influenza, a COVID-19, a dengue e o ebola. Até o câncer, apesar de não ser uma epidemia, tem ganhado destaque cada vez maior. No entanto, uma questão de saúde que nem sempre recebe a devida atenção é a violência contra a mulher, uma realidade tristemente comum no Brasil.
Para a OMS, uma pandemia é o acontecimento anormal de uma patologia que se dissemina globalmente, afetando uma proporção significativa da população em várias regiões ao mesmo tempo.1 E é exatamente o que observamos no caso da violência contra mulheres, que afeta milhões no Brasil e no mundo.
Aproximadamente 1 em cada 3 mulheres no planeta já sofreu violência física e/ou sexual em algum momento da vida.2 No Brasil, em 2022, foram registrados mais de 74.000 casos de estupro, sendo a maioria das vítimas mulheres e meninas.4 Além disso, a violência doméstica continua a ser um problema alarmante, com mais de 230.000 casos de lesão corporal dolosa registrados no mesmo ano.5 Quanto a feminicídios, o Brasil registrou um aumento de 1.6% em 2023, em relação a anos anteriores, grande parte cometida por parceiros íntimos.3
Contudo, nem sempre se trata de agressões físicas e sexuais. A violência contra a mulher se manifesta das mais diversas formas, podendo também ter caráter psicológico e patrimonial. Todas com impacto significativo na vida das vítimas, podendo deixar cicatrizes profundas e duradouras em sua saúde física e mental.
Algumas dessas marcas são mais perceptíveis como fraturas, contusões, cortes e queimaduras. Contudo, sabe-se que mulheres que sofrem violência física estão mais propensas a desenvolver problemas de saúde crônicos, como dores de cabeça, distúrbios gastrointestinais e dificuldades para dormir.7 Em casos graves, a violência pode levar a incapacidades permanentes ou até mesmo à morte.7,8
As vítimas de violência sexual têm risco de consequências a curto e a longo prazo. No primeiro caso, a falta de controle sobre a situação aumenta a probabilidade de gestações indesejadas e de exposição a agentes infecciosos, resultando em complicações como doenças inflamatórias pélvicas e infertilidade.9 Isso pode trazer desafios emocionais e físicos adicionais.9 Além disso, sabe-se que essas mulheres enfrentam um risco elevado de complicações na gravidez, como parto prematuro e baixo peso da criança ao nascer, além de problemas ginecológicos persistentes.9 Já os efeitos a longo prazo também são profundos, impactando a autoestima e a capacidade de manter relações saudáveis.9 O estigma associado à violência sexual frequentemente impede que as vítimas busquem ajuda, exacerbando os problemas de saúde física e mental.9
Além disso, a violência psicológica, que inclui ameaças, humilhações e controle coercitivo, gera nas mulheres que , frequentemente, transtornos de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).2,7 Estudos mostram que a exposição contínua à violência pode levar ao uso abusivo de substâncias, como álcool e drogas, como forma de lidar com o trauma.9
Ha ainda um pesado fardo econômico para as pessoas afetadas e para a sociedade como um todo. Vítimas de violência muitas vezes enfrentam dificuldades financeiras devido à incapacidade de trabalhar ou à perda de emprego resultante das agressões.8,9 Os custos associados ao tratamento médico e ao apoio psicológico também são significativos.9 Além disso, a violência pode levar ao aumento dos custos sociais relacionados a serviços de emergência, habitação temporária e assistência jurídica.8,9
Assim, é inegável que a violência contra a mulher é uma questão de saúde pública de grande magnitude. Além de afetar diretamente a saúde das vítimas, a violência contribui para a perpetuação de ciclos de violência e desigualdade de gênero.10 Políticas e intervenções preventivas e de assistência são essenciais.10 Abordagens baseadas na força, que buscam empoderar as mulheres e promover ambientes seguros, têm se mostrado promissoras na redução da prevalência e severidade da violência contra a mulher.10
No Brasil, algumas políticas e leis foram implementadas para combater o problema. A Lei Maria da Penha, uma das mais significativas, institui mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar, prevendo medidas de proteção como o afastamento do agressor do lar e a proibição de contato com a vítima.11 Além disso, a Lei do Feminicídio classifica-o como uma forma qualificada de homicídio, com penas mais severas para crimes cometidos por razões ligadas ao gênero, geralmente em contextos de violência doméstica.12
Vale ressaltar que um bom arcabouço legislativo não é suficiente. Campanhas de conscientização pública, como o “Agosto Lilás” e os “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, são realizadas para sensibilizar a sociedade e incentivar a denúncia de casos de violência. Além disso, existem canais de denúncia como o Disque 180, serviço de atendimento telefônico gratuito e confidencial, linha direta para denunciar casos de violência e obter informações sobre os direitos das mulheres e os serviços disponíveis.
Os profissionais de saúde também devem desempenhar um papel crucial na identificação precoce de casos de violência contra a mulher. Durante consultas e atendimentos de rotina, é fundamental que médicos, enfermeiros e outros profissionais estejam atentos a sinais de abuso físico e psicológico. A detecção precoce pode salvar vidas e prevenir consequências graves para a saúde das vítimas. Assim, a educação contínua e o treinamento dos profissionais de saúde são essenciais. Programas de capacitação devem incluir a identificação de sinais de abuso, técnicas de entrevista sensível e procedimentos para encaminhamento adequado das vítimas aos serviços de apoio disponíveis.
Diante do exposto, para enfrentar a violência contra a mulher, é necessário um compromisso coletivo que envolva não apenas a criação de políticas e a implementação de leis, mas também uma postura que leve em conta aspectos culturais e promova a igualdade de gênero. A educação, desde a primeira infância, sobre respeito mútuo e igualdade é uma ferramenta poderosa na prevenção da violência. Somente com uma abordagem integrada e multifacetada, poderemos reduzir a prevalência e a severidade da violência contra a mulher e construir um futuro mais seguro e igualitário para todos.
Referências
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