Esta é a opinião de Marcia Castro, Professora de Demografia, Chefe do Departamento de Saúde Global e População da Harvard T.H. Chan School of Public Health e, desde 2024, integrante do Conselho Consultivo da FME. Em entrevista exclusiva sobre ensino e pesquisa no Brasil, ela fala de nosso protagonismo, dos desafios enfrentados pelos cientistas, da necessidade de apoio do poder público e do risco embutido no aumento desenfreado do número de escolas de medicina. Confira aqui um pouco dessa conversa abaixo.

  1. Como você vê a importância de uma fundação brasileira, baiana, apoiando pesquisa em saúde e educação?

Acho superimportante termos uma fundação no nordeste, para tirarmos esse protagonismo do centro-sul. Como pesquisadora que trabalha tanto na saúde como na educação, acho fundamental ver o terceiro setor voltado para essas áreas. Afinal, não é possível pensar em capital humano e potencial de desenvolvimento do país sem saúde e educação. Fiquei muito feliz de ter conhecido a FME, primeiro porque agora conseguimos financiar alunos(as) brasileiro(as) que sonham em ir pra Harvard, uma porta fechada que agora está aberta. E, também fico feliz de participar do Conselho e dar uma gotinha de colaboração na direção de uma ação tão importante que é ajudar a pesquisa no Brasil com uma missão muito especial de trazer melhorias; ações que possam impactar a política pública e, como está na missão da FME, ajudar para a felicidade da sociedade. Estou superfeliz de poder estar contribuindo com isso.

  1. “Brasil como vanguarda da ciência e inovação” foi o título de uma conferência da qual você participou recentemente e que traz uma ideia contrária à percepção geral do nosso país nesse sentido. Houve uma inversão dessa realidade? Se sim, graças a quê?

Sim e não. O Brasil tem um protagonismo muito importante na ciência, que infelizmente ainda é negligenciado, em parte por desconhecimento, mas porque há um grupo que sempre acha que o que vem de fora é melhor. Mas um exemplo muito concreto é que, durante a epidemia do vírus da Zika, a contribuição que o Brasil deu em pesquisa é incomparável. Foram institutos brasileiros, pesquisadores brasileiros no Brasil e no exterior, fazendo pesquisa com dados do Brasil para resolver uma situação que estava acontecendo no Brasil, naquele momento, e beneficiar o mundo inteiro. A primeira pesquisa com minicérebros que mostrou o efeito causal do vírus na Zika congênita, nos bebês, foi feito no Brasil. Então, temos pesquisadores que estão no topo das suas disciplinas; o que a gente precisa é reconhecer isso. Acho um absurdo que o Brasil jamais teve um Prêmio Nobel. A gente teve Carlos Chagas, que até hoje é o único pesquisador no mundo, na história, que descobriu uma doença e sua epidemiologia, o mecanismo de transmissão, o vetor, tudo. Até morreu da doença! Ele deveria ter ganho. O que a gente precisa também é ter o apoio do governo pra pesquisa. Por que Osvaldo Cruz e Carlos Chagas foram tão brilhantes naquela época? Porque o governo entendia que sem aquele conhecimento científico, o Brasil nunca iria se desenvolver. A gente precisa ter esse protagonismo do conhecimento científico como absolutamente importante para o desempenho do país. O dia em que a gente tiver isso, ninguém segura o Brasil, pois o nosso potencial é muito grande. Outra coisa que acho que temos que tentar mais é fazer com que os pesquisadores que estão lá fora (e eu sou um exemplo) tenham que trabalhar com dados do Brasil, se lembrar quais são suas raízes. Se cada pesquisador(a) que está fora estivesse trabalhando com dados do Brasil e pro Brasil, isso seria uma contribuição enorme. E não são todos(as), o que acho profundamente lamentável. Então, penso que há um reconhecimento maior, mas a gente também precisa levantar a voz em alguns ambientes e mostrar que a gente pode e a gente está fazendo, e as pessoas têm que reconhecer isso. Mas também precisamos do apoio de quem faz as políticas.

  1. Como você avalia a evolução da pesquisa acadêmica no Brasil nos últimos anos?

Acho que tivemos altos e baixos. Mais recentemente, vínhamos de um momento bom, em que havia muito apoio para pesquisa, em que as pessoas iam pra fora para se especializar, e de repente entramos num buraco… não havia dinheiro pra nada, alguns professores universitários sendo perseguidos, dependendo do tópico. E agora estamos tentando retomar um pouco isso, mas com muita dificuldade, pois se olhamos para nossas universidades federais, por exemplo, muitas estão caindo aos pedaços. Não se consegue fazer ciência assim, salários de professores defasados… A universidade é o topo da pirâmide. Se você vai para o ensino básico, o que se ganha é ridículo, e é a base de tudo. Estamos retomando parte da pesquisa, porque fazer pesquisa no Brasil vinha sendo um ato de heroísmo. Em vez de ser pesquisador(a), você era um rebelde. Espero que voltemos para o pico da curva e fiquemos lá, pois esses altos e baixos ninguém aguenta. Começa a ter fuga de cérebros, gente que vai trabalhar na indústria e ganhar mais do que na academia. Cada pessoa dessa que a gente perde é um potencial de desenvolvimento, de conhecimento e de crescimento desse país, que a gente joga fora.

  1. Com tantas carências, onde e como concentrar os investimentos? Quais os principais desafios?

 O investimento na educação tem uma peculiaridade que é bem diferente, por exemplo, de doença infecciosa, com o que eu trabalho: é a questão do longo prazo. Doença infecciosa, você pegou agora, não tratou, você pode morrer, ou curou, é tudo muito rápido. Na educação, tudo é de longo prazo. Você pode levar uma geração para ver o efeito de uma medida ruim e de uma medida boa. Isso quer dizer que, o quanto antes se começar as ações, melhor. A base de tudo é a primeira infância, depois a criança entra no ensino básico. Não adianta investir na primeira infância se o nosso ensino básico é péssimo e tudo aquilo que se investiu, se perde no ensino básico. Quando esse indivíduo sair do ensino médio e for para a universidade, ele já tem deficiências. Então, onde investir? Acho que é preciso investir no ciclo educacional inteiro, começando da base, pra se formar indivíduos que vão estar muito melhor capacitados para exercer seu potencial completo quando chegarem no nível superior.

  1. Quanto à importância de se formar líderes globais em saúde pública, como estamos nesse caminho?

Acho que a gente tem líderes que têm ganho destaque. Para o mal ou para o bem, a pandemia revelou importantes pesquisas que saíram do Brasil, um protagonismo importante. Para o mal e para o bem porque houve uma demanda muito grande dos pesquisadores para usarem o seu conhecimento e sua voz para mostrar o que estava acontecendo. Fui uma das pessoas que entrei nisso também. Por tudo que a gente se dedicou a estudar, era quase um comprometimento, um compromisso humano de a gente poder trabalhar nessa área e tentar dar visibilidade a essas coisas. A gente tem grandes demandas que, novamente, se tivermos o incentivo e a receptividade correta dos tomadores de decisão/formadores de opinião, a gente pode ter um protagonismo muito grande. Mas as coisas estão andando um pouco devagar. Por exemplo, poderíamos estar tendo um protagonismo importante em eliminar a malária, e, com isso, combater o desmatamento, e o garimpo ilegal, e melhorar toda a questão dos direitos humanos dos indígenas. Com um objetivo, iríamos abordar tantas coisas juntas! Mas a gente não está lá. Falhamos muito com relação à dengue. Não dá pra culpar só o clima. A gente tem um potencial enorme, e acho que a gente está dependendo em parte de incentivo e em parte da receptividade das pessoas que dão a canetada, para poder exercer todo o potencial que a gente tem de ter um protagonismo em saúde global.

  1. Escolas de medicina no Brasil hoje: como você analisa a dicotomia quantidade X qualidade?

Sempre valorizei qualidade e não quantidade. Acho que foi um erro muito grande esse movimento que começou, durante o governo Lula, eu acho, de expandir o número de escolas de medicina. Alguma dessas escolas têm uma qualidade muito baixa e, em sua grande maioria, são particulares. Então as pessoas estão gastando dinheiro e não estão tendo uma qualificação muito boa. A gente está injetando no mercado profissionais que são tecnicamente médicos, nas não estão habilitados a exercer medicina. Isso é muito preocupante, por um lado, porque eles podem praticar medicina com uma qualidade péssima, e isso tem um custo social. Por outro lado, podem acabar exercendo uma atividade que nada tem a ver com a medicina. Então há toda uma desconexão entre no que eles estão investindo parte dos seus recursos e o que estão de fato exercendo. Nessa questão específica do ensino de medicina, a gente precisa levar isso a sério e priorizar qualidade. Nesse sentido, acho que tem muitas dessas escolas que deveriam fechar imediatamente porque as pessoas estão gastando dinheiro e não vão se tornar profissionais de qualidade pra exercer uma profissão que talvez eles realmente sonhem e queiram fazer, mas não vão conseguir por causa do treinamento que estão recebendo.