Artigo de Isis Belucci Gomes, bolsista apoiado pela FME no Master of Public Health (MPH) da Johns Hopkins University
Dia 12 de dezembro é dia mundial da cobertura universal de saúde. A data foi estabelecida em 2017, em comemoração à aprovação, por unanimidade, anos antes, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma resolução demandando que países aumentassem os esforços para provisão de cobertura universal de saúde.1,2 Considerada uma prioridade do desenvolvimento internacional e consagrada na meta 3.8 do objetivo 3. Garantir vidas saudáveis e promoção do bem-estar em todas as idades da Agenda 2030 de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a meta se desdobra em dois indicadores:
3.8.1 Cobertura dos serviços de saúde essenciais.
3.8.2 Proporção da população com grandes despesas em saúde como boa parte das despesas familiares em ou do rendimento familiar (em tradução da autora).3
Em 2023, o tema esteve novamente na pauta da reunião da Assembleia Geral, em 21 de setembro, ocasião que visava fazer um balanço de meio período do progresso entre a instituição dos ODSs, em 2015, e sua reta final, 2030, e reafirmar os compromissos da agenda.4
Desde 2014, há um movimento internacional multiatores para apoiar a causa, que formou a coalizão UHC2030 (sigla para Universal Health Coverage). O grupo é formado por estados-membros da ONU, organizações multilaterais ligadas à saúde ou de escopo mais amplo, representantes da sociedade civil, parlamentares, fundações filantrópicas, entidades privadas e integrantes do universo acadêmico.5
Em agosto de 2023, um grupo de alunos que cursam o Masters of Public Health na Johns Hopkins University (JHU), organizaram uma aula temática sobre o tema, com a participação do Dr. James Fitzgerald, Diretor de Sistemas e Serviços de Saúde da Organização Panamericana de Saúde (OPAS)[1]a, e da Professora Dra. Sara Bennett, chefe do programa de Sistemas de Saúde da Bloomberg School of Public Health.
Apesar de o tema estar na agenda política de diversos países e da ONU desde o século XX, foi em 2010 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) cunhou a definição da cobertura universal de saúde, como a garantia de que
“todos os indivíduos e comunidades recebem os serviços de saúde de que necessitam, sem ficarem expostos a dificuldades financeiras. Isso inclui toda a gama de serviços de saúde essenciais e de qualidade, desde a promoção da saúde até a prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos.”6
Segundo as diretrizes internacionais, as dimensões envolvidas na garantia da cobertura universal de saúde são três: cobertura de pessoas, cobertura de serviços e proteção financeira (figura 1) 6.
Dado que 80% da população mundial vive em países de baixa e média renda, mas recebe apenas 20% dos recursos para saúde, conforme dados de 2016, é para esta população que o objetivo terá mais impacto.8 Na nossa aula de política de saúde, fizemos uma análise do progresso no tema até aqui.
Em relação ao empobrecimento causado por despesas com saúde, a ONU adota dois critérios de corte para análise: 10% de gastos com saúde do total de gasto familiar – considerado alto gasto com saúde – e 25%, considerado gasto catastrófico com saúde. De forma geral, essa dimensão é importante porque, com o passar dos anos, o mundo avançou na direção da ampliação da cobertura de serviços, mas fez as pessoas empobrecerem ao buscarem assistência à saúde (figura 2).
O painel de indicadores dos ODS também traz outros parâmetros, como pessoas empurradas para abaixo da linha de extrema pobreza por despesas com saúde e percentagem de renda per capita consumida por tais despesas (ambas com variadas medidas). Vale conferir o painel de indicadores dos ODS aqui e os mais gerais de saúde aqui.
No Brasil, em 2021, alcançamos um índice de cobertura universal de saúde de 80%, igual ao da região das Américas e maior que a média mundial de 68%.10,[2]a Contudo, apesar dos avanços e do nosso sistema universal de saúde, reconhecido na Constituição e gratuito em sua essência, em 2017, 12% da população tinha mais de 10% de seus gastos relacionados à saúde, conforme o critério da ONU para definição de dificuldade financeira.12,13
É relevante lembrar que a cobertura universal de saúde não se refere à garantia de um pacote mínimo de serviços, uma vez que adota como horizonte a expansão progressiva da assistência oferecida e da proteção financeira.6 Contudo, também não garante a oferta gratuita de todos os serviços e produtos de saúde a todas as pessoas, reconhecendo que nenhuma nação no mundo poderia fornecer todo o contínuo de intervenções de forma sustentável.6 De forma geral, o conceito preconiza a adoção de serviços com enfoque populacional, não apenas individuais e curativos, mas preventivos e de promoção à saúde, dado que esses favorecem a relação custo-benefício e custo-efetividade dos serviços de saúde.6 Neste sentido, a atenção primária à saúde tem um papel primordial no alcance da cobertura universal, já que esse nível de entrada no sistema de saúde favorece uma abordagem universalizante, populacional e profundamente efetiva, pois a vasta maioria das necessidades de saúde individuais podem ser resolvidas na atenção primária integral.14
Dr. Fitzgerald e a Prof. Bennet recuperaram os valores por trás da defesa de uma cobertura universal em saúde: o direito à saúde, à equidade, à universalidade e à solidariedade. Este último faz um ataque frontal à estratégia que sustenta muitos planos de saúde privados, de buscar favorecer a adesão de pessoas saudáveis e com boas condições de vida para maximizar lucros, deixando muitas pessoas com necessidades críticas de fora dos critérios de elegibilidade, em vez de promover mecanismos de compartilhamento de riscos e custos em diversos grupos. O sistema americano, por exemplo, tenta historicamente driblar esse tipo de racionalidade, tendo na aprovação do Affordable Care Act, em 2010, uma das reformas mais importantes nesse sentido, porque institui em lei a garantia de que nenhuma pessoa pode ter negado um seguro em saúde de mínima qualidade com base em condições de saúde pré-existentes.1
Fitzgerald também abordou os desafios que países enfrentam para atingir a cobertura universal. Falou sobre a inequidade e exclusão características de muitas sociedades no continente americano, bem como a falta de acesso a serviços de saúde de qualidade, a mudança do perfil demográfico e epidemiológico da população, os custos crescentes no setor da saúde, e a dificuldade de promover a ação intersetorial, capaz de endereçar com maior efetividade o impacto dos determinantes sociais da saúde – condições de vida, trabalho e lazer, responsáveis pela maior parte do estado de saúde das pessoas, geralmente mais do que a assistência médica.9
Outro aspecto discutido foi como a COVID-19 afetou os sistemas no mundo. O relatório do movimento UHC2030 procurou medir o impacto da pandemia em diferentes áreas, por survey com lideranças dos governos nacionais. As figuras 3 e 4 mostram que o continente americano foi o mais atingido, no que tange a atenção primária à saúde e os níveis de reabilitação e cuidados paliativos.11
A OPAS, desde 2014, antes da instituição dos ODS, defende quatro linhas estratégicas para alcance da cobertura universal em saúde: i. A expansão de acesso a serviços integrais e de qualidade, centrados nas pessoas e na comunidade; ii. O fortalecimento da gestão e da governança dos sistemas de saúde; iii. O aumento do financiamento à saúde, com promoção da eficiência e da equidade no acesso a recursos, com vistas a eliminar os gastos pagos do próprio bolso das pessoas para obtenção de serviços de saúde, e; iv. O fortalecimento de ações intersetoriais para endereçar os determinantes sociais da saúde.16
Ressalte-se um aspecto dessa estratégia, que tem adquirido importância crescente: o uso de tecnologias para aprimorar a gestão e a governança de sistemas. O que se chama de “saúde digital” pode ser mais que uma buzz word e realmente tem o potencial de nos levar a entender onde estão os vazios assistenciais, os gargalos de nossos esforços para cuidar das pessoas, e como suas necessidades de saúde mudam ao longo do tempo, de forma mais rápida e precisa, em direção à garantia do direito universal à saúde.17,18 Para isso, no Brasil, temos buscado há anos vencer um desafio essencial para a previsão de custos, o dimensionamento de serviços e o monitoramento mais fiel de indicadores de saúde: a definição de um identificador único para cada usuário do SUS, que informe inclusive a busca de cuidados no setor privado.
Para além desse ponto, há grandes expectativas sobre a discussão da agenda de saúde digital na reunião do G20 em novembro, que o Brasil presidirá. Há a expectativa de que as lições aprendidas nos últimos anos no SUS inspirem definições que possam fortalecer a busca pela saúde universal em âmbito mundial.
E, para além de 2024, é importante que todos lembrem e compartilhem histórias de quem ainda não teve seu direito à saúde respeitado, na luta pelo reconhecimento do direito universal à saúde, celebrado a cada dia 12 de dezembro.
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[1]a Cabe ressaltar que a OPAS é uma organização pioneira na defesa regional do direito e da cooperação técnica para à saúde, criada antes da Organização Mundial de Saúde (OMS), e que defende a agenda da cobertura universal há décadas, sendo a América Latina uma região em que diversos sistemas universais se desenvolveram.
[2]a O indicador é complicado, é verdade, por envolver medidas relativas à saúde reprodutiva, materna, infantil, controle de doenças infecciosas, de doenças crônicas e medidas de capacidade de serviços e acesso, e suscita críticas por não incluir aspectos fundamentais das necessidades de saúde moderna – a saúde mental –, mas tem valor por propor uma medida de comparação entre países.11